quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Clemente, o bom boliviano

Não que os outros sejam maus bolivianos, mas este homem merece duas ou três linhas de homenagem. Tem 62 anos, muitos dentes a menos mas paciência e audacidade de sobra. É o guru do altiplano boliviano, aquele que sabe realmente o que faz e a quem todos recorrem quando estão desorientados ou com os seus chaços na mão. Ó doce Clemente, porque nos deixaste assim esmigalhados com a tua existência? Sabes do que eu gostava mais? De quando dizias – quase sempre antes de qualquer outra frase “amigos (pausa), no hay problema”. E a verdade é que nunca havia mesmo. És prático como uma mulher do campo, com sete filhos às costas e a lavar roupa no tanque, mas calmo como um urso a hibernar. A coca até faz milagres, mas eu acredito que metade desse teu ar pachola e amolecido já vinha contigo quando rompeste o ventre da tua mãe. Adoro o fato-macaco que vestiste no primeiro e no terceiro dia da nossa curta vida em comum. Mas gostei principalmente quando ataste a parte de cima à cintura e revelaste o teu colete branco à Humanidade. Aos 62 anos és sexy, Clemente! As indígenas ficam malucas contigo pelam-se por um minuto da tua atenção – eu bem via como te olhavam. Deve ser essa tua sabedoria e simplicidade que atraem como um íman. E o facto de teres meio dedo em falta não te impede de teres sempre duas mãos para ajudar quem precisa - essas grandes mãos abertas que sempre acompanhavam o “amigos, no hay problema”, como que a obrigarem-nos a sermos tranquilos como tu. Além de tudo, és esperto. E tens cabelo para uma vida - negro, quase igual à tua pele curtida pelo sol impiedoso das grande altitudes. Gostas de chocolates, ficas com ar de puto reguila ao comê-los. Mas também sabes falar sobre o teu país e as tuas gentes, sobre o primeiro presidente - indígena como tu. Ai Clemente, deixaste-nos saudades, sabes? Aquela nostalgia de quem sabe que dificilmente voltará a cruzar-se contigo. Para ti devemos ter sido mais um grupo como outros mil que se sentam no teu carro sem música. Mas para nós tu foste a essência daqueles dias em que comemos da mesma comida improvisada e respirámos o mesmo pouco ar dos desertos altos. Tal como os fenónemos da Natureza que nos levaste a conhecer, por entre os caminhos de cabra e os trilhos do além, também tu és irrepetível. Hoje, como no dia em que te devolvemos ao teu habitat, eu digo “hasta pronto, Clemente”. Espero que tenhas ouvido, apesar da tua surdez que nos passou despercebida. Achávamos que era só essa tua maneira de ser distante mas afinal - que ingénuos - eras surdo que nem uma porta. E coxo. E maravilhoso.

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