quinta-feira, 19 de março de 2009

de mim para mim

Foi porque duas pessoas me fizeram que hoje aqui estou. Fui a terceira tentativa da minha mãe de ter uma menina nos braços e a única que deu certo. Hoje sou menina, mulher, ainda não mãe, mas sempre filha – umas vezes melhor que outras. E hoje agradeço a minha existência e tudo o que trago comigo de há 27 anos para cá.

[Olho para trás, cá por dentro, e vejo-me a espernear em birras sem fim. A despir-me na carrinha da escola por não querer sair e a esconder-me debaixo do banco; a berrar quando os meus primos me chamava “severa” em vez de só “vera” – só para me atazinarem a cabeça e realmente a conseguirem fazê-lo, lá no quarto da costura de outros tempos -; a dizer ao meu avô “vai-te embora qu esta casa não é tua!”; a não dirigir a palavra senão a um só primo de cada lado mas a deixar-me subornar com After Eights; a fazer baptizados a Nenucos e enterros a formigas; a fazer do agrafador um telefone de secretária; a chorar por ver os meus irmãos mais velhos à bulha (como se chorar salvasse o mais fraco); a esconder-me no armário da casa de banho quando brincávamos às escondidas; a fazer de sentinela quando eles fumavam cigarros em segredo no terraço; a passar as composições a limpo para irem para a parede lá na escola primária; a não poder nem cheirar coelho mas a lambuzar-me com “frango à coelha” (sem saber que eram absolutamente uma e a mesma coisa); a levar dentadas no rabo da Anabela cozinheira sempre que esta me apanhava a trepar ao armário para rapinar as goluseimas escondidas em cima do frigorífico, a rapar as tigelas dos doces que ela fazia (e ela deixava-me porque sabia que isso era darem-me o céu); a amuar e a ver o mundo contra mim quando os meus pais não me deixavam ir a algum lado logo à primeira (e depois era eu que já não queria); a comer Bollycaos e Ruffles com sabor a presunto nas visitas de estudo do ciclo; a odiar que os meus irmãos se atirassem aos pombos com fisgas e pressões de ar; a estudar sempre e só nas vésperas dos testes (e mais tarde dos exames e frequências) e a conseguir enervar toda a gente com o meu stress; a delirar de cada vez que ia dormir às casas das minhas amigas; a babar-me com “A Bela e o Monstro” porque ainda acreditava mesmo no amor e nos contos de fadas; a sonhar alto que era actriz e modelo, ou então cantora e bailarina, a falar ao telefone com a minha amiga mais tagarela e a pedir-lhe que esperasse porque tinha de ir fazer cocó; a ler na cama “Os cinco” e “Os sete” até altas horas (mas apagava a luz quando ouvia que os meus pais se iam deitar e depois então retomava); a ficar a acordada quando eles iam jantar à Feira da Gastronomia - gulosamente à espera dos barquinhos de ovos moles que lhes suplicava que me trouxessem.]

Porque um Pai e uma Mãe me puseram neste mundo passei por tudo isto e muito mais. Dizem que fui menina meio áspera e de péssimo feitio, mas também dizem agora que sou uma jóia de pessoa - e que dantes é que era intragável. Lamenta-se a minha mãe - a brincar ou mais a sério – por, de tantos bons genes disponíveis, eu apenas lhe ter roubado as cores. Parece que dispensei o bom-senso, a organização, o equilíbrio, e os troquei pela distracção, o “aluamento” e os extremos do meu pai. Tenho tudo o que ele tinha de menos bom e se isso dantes me preocupava um bocadinho, hoje é um secreto motivo de orgulho e de graça. Revejo-me nele e nas suas histórias mirambulantes, nas suas paixões, nos seus esquecimentos e nos seus rasgos de amor repentinos: “Ó Verinha, tu não te casas e ficas a tomar conta do teu paizinho, não ficas?” – gracejava invariavelmente ao serão. E eis que a vida deu cambalhota e hoje aperta-se-me o peito quando ecoa este pedido. Ele e eu sabemos que sim, que os seus desejos serão sempre ordens minhas. Mas se calhar fazemos agora um pequeno ajuste adaptado às circunstâncias da vida: à parte do não casar eu dou-lhe um sentido figurado (não vá a vida trazer-me um príncipe irrecusável, que certamante ele aprovaria); à parte do tomar conta, invertemos os papéis e eu passo a ser o sujeito do pedido. Afinal, esta é a lei mais natural da vida – os pais que protegem e cuidam dos filhos. Assim sempre foi e continuará a ser. E desta forma o Dia do Pai continuará sempre a ser um dia bonito. No matter what.

6 comentários:

Isabel Maria Mota disse...

Obrigada pela ternura das palavras com que falas acerca deste dia pois através dela também eu entrei numa viagem muito boa que foi crescer com um pai tão....cheio. Graças a Deus ainda lhe ouço rasgados pedidos e declarações de amor únicas, apesar dos meus já quase quarenta anos, mesmo que hoje, por exemplo, só porque também tem mau feitio, não me atenda o telefone. Fico por aqui tentar falar com ele pois mora longe. De onde estou deixo-te um enorme abraço e um obrigada pelo click que me fez viajar. Gosto muito de te ler. Fazes-me bem. Obrigada, Isabel

Etimologia dos nomes disse...

Há muito tempo que não lia um texto que me calasse...

RUTH disse...

Tudo o que eu queria dizer por palavras seria sempre pouco! Só tu conseguiria transmitir através de um Abraço!
Para ti...
Aquele Abraço

Vaskini disse...

Apesar de tudo, ele continua a ver-te e a aprovar a tua falta de juízo... tu sabes bem :)

Beijinho neste dia especial.

Arte de Débora disse...

Lindíssimo, Vera!!!

Anónimo disse...

Olá Verinha!
entrei no teu face e vi o link do blog nao resisti dar uma olhadela pelas tuas fotos, quando me deparei com este lindissimo texto... o tempo passa depressa... mas o amor mantêm-se igual.
Realmente não tinha nada a ideia de seres tão mau feitio, pelo contrário :p
um beijo grande no coração!
Patrícia Ribeiro (Str)