Foi porque duas pessoas me fizeram que hoje aqui estou. Fui a terceira tentativa da minha mãe de ter uma menina nos braços e a única que deu certo. Hoje sou menina, mulher, ainda não mãe, mas sempre filha – umas vezes melhor que outras. E hoje agradeço a minha existência e tudo o que trago comigo de há 27 anos para cá.
[Olho para trás, cá por dentro, e vejo-me a espernear em birras sem fim. A despir-me na carrinha da escola por não querer sair e a esconder-me debaixo do banco; a berrar quando os meus primos me chamava “severa” em vez de só “vera” – só para me atazinarem a cabeça e realmente a conseguirem fazê-lo, lá no quarto da costura de outros tempos -; a dizer ao meu avô “vai-te embora qu esta casa não é tua!”; a não dirigir a palavra senão a um só primo de cada lado mas a deixar-me subornar com After Eights; a fazer baptizados a Nenucos e enterros a formigas; a fazer do agrafador um telefone de secretária; a chorar por ver os meus irmãos mais velhos à bulha (como se chorar salvasse o mais fraco); a esconder-me no armário da casa de banho quando brincávamos às escondidas; a fazer de sentinela quando eles fumavam cigarros em segredo no terraço; a passar as composições a limpo para irem para a parede lá na escola primária; a não poder nem cheirar coelho mas a lambuzar-me com “frango à coelha” (sem saber que eram absolutamente uma e a mesma coisa); a levar dentadas no rabo da Anabela cozinheira sempre que esta me apanhava a trepar ao armário para rapinar as goluseimas escondidas em cima do frigorífico, a rapar as tigelas dos doces que ela fazia (e ela deixava-me porque sabia que isso era darem-me o céu); a amuar e a ver o mundo contra mim quando os meus pais não me deixavam ir a algum lado logo à primeira (e depois era eu que já não queria); a comer Bollycaos e Ruffles com sabor a presunto nas visitas de estudo do ciclo; a odiar que os meus irmãos se atirassem aos pombos com fisgas e pressões de ar; a estudar sempre e só nas vésperas dos testes (e mais tarde dos exames e frequências) e a conseguir enervar toda a gente com o meu stress; a delirar de cada vez que ia dormir às casas das minhas amigas; a babar-me com “A Bela e o Monstro” porque ainda acreditava mesmo no amor e nos contos de fadas; a sonhar alto que era actriz e modelo, ou então cantora e bailarina, a falar ao telefone com a minha amiga mais tagarela e a pedir-lhe que esperasse porque tinha de ir fazer cocó; a ler na cama “Os cinco” e “Os sete” até altas horas (mas apagava a luz quando ouvia que os meus pais se iam deitar e depois então retomava); a ficar a acordada quando eles iam jantar à Feira da Gastronomia - gulosamente à espera dos barquinhos de ovos moles que lhes suplicava que me trouxessem.]
Porque um Pai e uma Mãe me puseram neste mundo passei por tudo isto e muito mais. Dizem que fui menina meio áspera e de péssimo feitio, mas também dizem agora que sou uma jóia de pessoa - e que dantes é que era intragável. Lamenta-se a minha mãe - a brincar ou mais a sério – por, de tantos bons genes disponíveis, eu apenas lhe ter roubado as cores. Parece que dispensei o bom-senso, a organização, o equilíbrio, e os troquei pela distracção, o “aluamento” e os extremos do meu pai. Tenho tudo o que ele tinha de menos bom e se isso dantes me preocupava um bocadinho, hoje é um secreto motivo de orgulho e de graça. Revejo-me nele e nas suas histórias mirambulantes, nas suas paixões, nos seus esquecimentos e nos seus rasgos de amor repentinos: “Ó Verinha, tu não te casas e ficas a tomar conta do teu paizinho, não ficas?” – gracejava invariavelmente ao serão. E eis que a vida deu cambalhota e hoje aperta-se-me o peito quando ecoa este pedido. Ele e eu sabemos que sim, que os seus desejos serão sempre ordens minhas. Mas se calhar fazemos agora um pequeno ajuste adaptado às circunstâncias da vida: à parte do não casar eu dou-lhe um sentido figurado (não vá a vida trazer-me um príncipe irrecusável, que certamante ele aprovaria); à parte do tomar conta, invertemos os papéis e eu passo a ser o sujeito do pedido. Afinal, esta é a lei mais natural da vida – os pais que protegem e cuidam dos filhos. Assim sempre foi e continuará a ser. E desta forma o Dia do Pai continuará sempre a ser um dia bonito. No matter what.
quinta-feira, 19 de março de 2009
de mim para mim
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6 comentários:
Obrigada pela ternura das palavras com que falas acerca deste dia pois através dela também eu entrei numa viagem muito boa que foi crescer com um pai tão....cheio. Graças a Deus ainda lhe ouço rasgados pedidos e declarações de amor únicas, apesar dos meus já quase quarenta anos, mesmo que hoje, por exemplo, só porque também tem mau feitio, não me atenda o telefone. Fico por aqui tentar falar com ele pois mora longe. De onde estou deixo-te um enorme abraço e um obrigada pelo click que me fez viajar. Gosto muito de te ler. Fazes-me bem. Obrigada, Isabel
Há muito tempo que não lia um texto que me calasse...
Tudo o que eu queria dizer por palavras seria sempre pouco! Só tu conseguiria transmitir através de um Abraço!
Para ti...
Aquele Abraço
Apesar de tudo, ele continua a ver-te e a aprovar a tua falta de juízo... tu sabes bem :)
Beijinho neste dia especial.
Lindíssimo, Vera!!!
Olá Verinha!
entrei no teu face e vi o link do blog nao resisti dar uma olhadela pelas tuas fotos, quando me deparei com este lindissimo texto... o tempo passa depressa... mas o amor mantêm-se igual.
Realmente não tinha nada a ideia de seres tão mau feitio, pelo contrário :p
um beijo grande no coração!
Patrícia Ribeiro (Str)
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