E agora ele estava aqui outra vez e afinal nada tinha acontecido. Estaria a começar a ir para casa, onde só chegaria em cima da hora do jantar. Pelo caminho ia parar algures para lanchar ou petiscar, dando uso à tão sua arte de bem comer. Depois parava mais umas três ou quatro vezes à beira da estrada para falar com este e com aquele e para oferecer cães, fechar negócios, inventar programas e fazer cinco combinações para um mesmo dia e uma mesma hora – sendo que não faria nenhuma delas mas sim uma outra coisa que só surgiria no próprio dia e afinal muito mais importante do que todas as outras. Durante a viagem até casa, ia pegar no telefone para devolver todas as chamadas não atendidas. Foste tu que me ligaste? Eu? Sim, liguei... mas essa chamada já foi há dois dias! Ah, ok... Mas pronto, não fazia mal e aproveitava para perguntar se estava tudo bem. Quando chegasse a casa ia dar pela falta de qualquer coisa, fosse a carteira que tinha ficado em cima do capot do carro e que tinha voado, fosse um papel importante, fosse um encontro com alguém que estava à espera dele desde manhã. E perguntava o que era o jantar. Provavelmente, ao mesmo tempo que fizesse esta pergunta, estava a atracassar-se aos tachos e então era vê-lo a fazer em três tempos aquilo com que vinha a sonhar todo o caminho – aquela costoleta, aquele arrozinho molhado, aquele bifinho da vazia e, claro, aquela batatinha frita cortada às rodelas depois da faca devidamente afiada (estou a ouvi-lo, vigoroso e orgulhoso: zuc zuc zuc... ah, isto sim é uma faca como deve ser, não é cá estas porcarias com que vocês se amanham). Depois até ia dar gosto vê-lo regalar-se com o seu repasto. O telefone não ia parar de tocar e iamos pedir-lhe vezes sem conta que falasse mais baixo, enquanto dava voltas à casa e arrancava as crostas da cabecinha fracamente povoada de cabelo. Quando finalmente se sentasse no seu sítio de sempre para ver televisão e comentar as varizes da Dalila Carmo - ou que pileca que era a Patrícia Tavares ou que rico decote tinha a Catarina Furtado naquele dia - de certeza que ia querer algo doce. E nessa altura, eu seria a cúmplice e iamos abrir e fechar portas até descobrirmos uma lata de leite condensado ou de pêssego em calda que nos traria a felicidade por meia hora, até enjoarmos. Se tudo falhasse, ele teria um plano B e de lá do fundo, por entre as portas e as novelas, iamos ouvir o tlim tlim tlim da colher a bater na caneca de leite morno com açucar. Por amor de Deus, não tens idade para beber isso. Ah pois não não tenho, vocês é que não sabem o que é bom! Depois os olhos iam começar a fechar, as mãos a pendurarem-se na barriga, os óculos a escorregarem, suaves, pela cara. Ia acordar estremenhado e perguntar por tudo o que não tinha visto, o fim do filme, quem tinha ganho, o que é que o júri tinha dito daquele concorrente. Estás a ver, quem é que sabe? Gostavas de ser assim também, gostavas, de dar opiniões como as dos júris?, gracejava sempre da mesma maneira. E depois ia para a cama aos trambolhões, um passo sempre a ouvir-se mais do que o outro, mas ambos pesados. Ou antes fortes, como ele. Dormiria como um santo, ressonaria como um urso. E acordaria no dia seguinte, como um menino acabado de pôr no mundo. Com tudo para descobrir, com tudo para fazer, com tudo para gozar. Sim, ele é sabia o que era bom.
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
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2 comentários:
Está tão vivo, Verinha...
A Saudade é a Memória do Coração, é o ser depois do ter, não é sinal que estamos longe mas que um dia estivemos perto.
Saudade é Vida é AMOR.
Mega beijinho
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